quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Uma reflexão...



Envelhecer : com mel ou fel ?

Affonso Romano de Sant'anna Jornal do Brasil
30/07/87.


Conheço muitas pessoas que estão envelhecendo mal. Desconfortavelmente. Com uma infelicidade crua na alma. Estão ficando velhas, mas não estão ficando sábias. Um rancor cobre-lhes a pele, a escrita e o gesto. São críticos azedos, aliás estão ficando cítricos sem nenhuma doçura nas palavras. Estão amargos. Com fel nos olhos.

E alguns desses, no entanto, teriam tudo para ser o contrário : aparentemente tiveram sucesso em suas atividades. Maior até do que mereciam. Portanto a gente pensa : o que querem? Por que essa bílis ao telefone e nos bares ? Por que esse resmungo pelos cantos e esse sarcasmo que se pensa humor ? Isto está errado. Errado, não porque esteja simplesmente errado, mas porque tais pessoas vivem numa infelicidade abstrusa. E, ademais, deveria-se envelhecer maciamente. Nunca aos solavancos. Nunca aos trancos e barrancos. Nunca como alguém caindo num abismo e se agarrando nos galhos e pedras, olhando enquanto despenca. Jamais também, como quem está se afogando, se asfixiando ou morrendo numa câmara de gás.

Envelhecer deveria ser como plainar. Como quem não sofre mais (tanto), com os inevitáveis atritos. Assim como a nave que sai do desgaste da atmosfera e vai entrando noutro astral, e vai silente, e vai gastando nenhum-quase combustivel, flutuando como uma caravela no mar ou uma cápsula no cosmos.

Os elefantes, por exemplo, envelhecem bem. E olha que é uma tarefa enorme. Não se queixam do peso dos anos, e nem da ruga do tempo, e , quando percebem a hora da morte, caminham pausadamente para um certo lugar - o cemitério dos elefantes, e aí morrem, completamente, com a grandeza existencial só aos sábios permitida.

Os vinhos envelhecem melhor ainda. Ficam ali nos limites de sua garrafa, na espessura de seu sabor, na adega do prazer. E vão envelhecendo e ganhando vida, envelhecendo e sendo amados, e, porque velhos, desejados. Os vinhos envelhecem densamente. E dão prazer.

O problema da velhice também se dá com certos instrumentos. Não me refiro aos que enferrujam pelos cantos, mas a um envelhecimento atuante como o da faca. Nela o corte diário dos dias a vai consumindo. E no entanto, ela continua afiadíssima, encaixando-se nas mãos da cozinheira como nenhuma outra faca nova.

Vai ver, a natureza deveria ter feito os homens envelhecerem diferente. Como as facas, digamos, por desgaste, sim, mas nunca desgastante. Seria uma suave solução: a gente devia ir se gastando, se gastando, se gastando até se evaporar. E aí iam perguntar: cadê fulano? E alguém diria: gastou-se foi vivendo, vivendo, e acabou. Acabou, é claro, sem nenhum gemido ou resmungo.

Isto seria muito diferente de ir envelhecendo por um processo de humilhações sucessivas, como essa coisa de ir deixando rins, pulmões, dentes e intestinos pelas mesas de cirurgia, numa mutiladora dispersão.

Acho que o que atrapalha alguns maus envelhecedores é a desmesurada projeção que fizeram de si mesmos. Se dimensionaram equivocadamente. Deveria ser proibido, por algum mecanismo biológico, colocarmos metas acima de nossas forças.

Seria a única solução de acabar com a fábula da raposa e as uvas. Assim a raposa não envelheceria resmungando por não ter devorado o que não lhe pertencia. Deveria, portanto, haver um relais, que desligasse nossos impulsos toda vez que quiséssemos saltar obstáculos para os quais não temos músculos.

Assim sofreríamos menos e não amargaríamos não ter tido certas mulheres, conquistado certos reinos, escrito certas obras primas.

A literatura tem lá seus personagens-símbolos a esse respeito: o Fausto e Dorian Gray. Apavorados com a velhice e a morte, venderam a alma ao diabo, e em troca pediram a juventude de volta. Não deu certo. O diabo não joga para perder. Dizem que a única vez que foi realmente derrotado foi naquela disputa com o próprio Deus a respeito de Jó. Mesmo assim, deu um trabalho danado.

Especialistas vão dizer que envelhece mal o indivíduo que não realizou suas pulsões eróticas assenciais; que deixou coagulada ou oculta uma grande parte de seus desejos. Isto é verdade. Parcial porém. Pois não se sabe por que estranhos caminhos de sublimação, há pessoas que, embora roxas de levar tanta pancada da vida, têm, contudo, um arco-íris na alma.

Bilac dizia que a gente deveria aprender a envelhecer com as velhas árvores. Walt Whitman tem um poema onde vai dizendo: " Penso que podia viver com os animais que são plácidos e bastam-se a si mesmos".

Ainda agora tirei os olhos do papel e olhei a natureza em torno. Nunca vi o sol se queixar no entardecer. Nem a lua chorar quando amanhece.

8 comentários:

jurisdrops disse...

Ter arco-íris na alma e bastar-se é postura de quem é sábio. De quem é feliz. Abraços.

Paula Mello disse...

Que lindo, né Graça?? Essa de envelhecer de manso, na banguela, é uma ótima idéia! Sabe o que eu vejo? Que as pessoas passam a vida inteira se preparando para a vida, estudando e trabalhando, mas não se preparam nem para envelhecer e nem para morrer...Mas fique triste não! Passa lá no Quintal para se alegrar um bocadinho, viu??
Beijos!!

Renato Baptista disse...

Graça...

Obrigado por sua visita à Academia da Poesia. Muito lindas as mensagens no seu blog.
Conheça o blog que mantenho: http://estejamosempaz.blogspot.com e nossa rede social: www,casadapoesia.ning.com
Uma honra o seu comentário no meu texto.
Renato Baptista

Graça Tristão disse...

Graça estava com saudades...é claro que pode trazer o selinho é seu menina!
Uma noite cheia de estrelas e um FDS com muita LUZ e PAZ no seu coração...
Bj
Graça

Santa Imaginação disse...

Que máximo!!!Acho que todo mundo deveria ler esse texto!!!Bjs
Zu

Graça Tristão disse...

Boa Tarde Graça!
É tão bom sua presença em meu blog...ele fica com certeza mais colorido!
Um lindo sábado prá você com muita PAZ e LUZ no seu coração...
Bj
Graça

Graça Tristão disse...

Graça toda vez que te visito quero comentar sobre este maravilhoso texto e acabo indo embora!
Bjcas
Graça

Débora Camargos disse...

Graça e Paz para ti!
Que maravilha de texto!
Quero envelhecer lendo texto como esse.
Texto assim nos edifica, nos ensina, nos faz melhores.
Com certeza sua alma tem um belo arco- íris!
A mão escreve aquilo que o coração tá cheio.
Obrigada pela visita em meu blog!
Estou honrada, ainda mais pelo elogio que fez aos meus "quase" haicais.
Conheci agora esse estilo. Nessa semana. Amo poemas! Passo horas lendo Mário Quintana, Clarice Lispector e outros. Desde criânça arrisco escrever algumas coisas.
Estou lendo sobre o assunto, mas confesso, estou um pouco confusa. Existem várias tendências, estilos... Não sei! Se puder me ajudar, desde já agradeço!
Um grande abraço! E que Deus continue te abençoando!