(miltonnascimento/mariarita: lindo!!
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a música.)
Chegamos.
Estou entre a porteira e o sonho. Cheiro de leite morninho tirado na hora. O orvalho brilha no capinzal e chove torrencialmente no campo. Há neblina no milharal.
Diviso o velho riacho e escuto ainda o eco da criançada gritando, tomando banho. Fecho meus olhos e revejo num ‘flash' cenas alegres da infância. Aprendi desde cedo o gosto de ser mineiro.Ser mineiro é o cheiro delicioso do canteiro de hortênsias, das flores silvestres e da terra molhada após a chuva. É a nostalgia da velha cozinheira cantando e cozinhando no fogão a lenha, enxugando no avental o suor de seu rosto:algo convida pra logo, tem fumaça na chaminé...
Ser mineiro é ter fundo na alma o gosto da terra. É enxergar verdinho, tentando enganar um pouco a saudade, a lembrança dos filhos longe, no estrangeiro...
Ser mineiro é curar umbigos de criança e jogar todos eles na roseira, que é pra dar sorte.
É sentar na varanda todos os dias à mesma hora, no vagaroso tecer dos anos, só pra ouvir o canto majestoso do sabiá.
Ser mineiro é a fala simples do camponês: hoje vai ter ‘cripe’ da lua, as crianças estudadas da cidade segurando o riso, misto de interrogação e respeito!
É ser como São Tomé – não sair acreditando nas ‘conquistas da ciência’, mas preferir ele mesmo testar.
É ter flores de todas as cores e gostar delas.
O gosto de ser mineiro está nas grandes vaquejadas, nas pescarias à beira do rio, covos armados no verão.
Ser mineiro é afirmar de pés juntos que o Everest não é assim o pico mais alto do mundo, tamanho não é documento...
É acordar nas madrugadas com o mais gostoso despertador, cocoricando nas manhãs fresquinhas de amendoim torrado, socado de noite no pilão. É paçoca com gengibre na panela.
Ser mineiro é o chá de hortelã ‘pra curar as bichas’, e o bicho-de-pé coçando, doendo...
É envelhecer sorrindo, sorriso de poucos dentes, enfrentando assombrações com a bravura de quem sabe a que veio!
Ser mineiro é abençoar a lua clara, iluminando a estrada, e o sol escaldante dos dias de verão.
Ser mineiro são as festas do Santo Padroeiro, a Folia de Reis. Acender vela pro santo e depois brigar feio com ele.
É a fé mais inabalável, a crença mais singela, nas rezas de família, misturadas, confundidas com superstições...
É sentir na alma inteira que é sempre tempo de festa e é hora de celebrar.
Ser mineiro é aquela correria: - tarde, compadre; tarde, comadre! Lá evém chuva! E todos correndo para cobrir depressa os grãos de café no terreiro (mais preciosos que as pedras de anel chique das comadres da cidade...)
É enxergar molhado a plantação arrastada pela enchente de janeiro! Ter fé que no ano que vem não vem aguaceiro igual.
Ser mineiro é vislumbrar por entre as montanhas um pedaço reduzido do paraíso. Deitar e esticar-se na rede, aproveitando a sombra e a fruta das mangueiras, carregadas de pardais.
Enxerguei cedo que ser mineiro é reviver tradições, remexer o passado, e, como diziam meus pais, não saber ‘contar um conto sem aumentar um ponto’! É ter a dignidade de um fio de barba. É gostar de ser herói e morrer por uma causa. É jogar limpo. É ser honesto até debaixo d’água e não trair um amigo nem que a vaca tussa...
É a flor do feijão estalando ao sol e a sombra gostosa e amiga nos terreiros de café. É o gado enfileirado, sabendo a hora de voltar.
Ser mineiro é ser simples: é o doce em compota na despensa, provocando mistério. É o bule de café quentinho e a galinha esperando, desconfiando do destino...
Leitão, linguiça, mandioca:pode entrar, que a casa é nossa.
É arrear o cavalo e seguir em frente. É tirar o chapéu ao ouvir o santo nome de Deus, numa harmonia perfeita entre o criador e sua criatura!
Viola que chora, saudade que punge no peito.
Ser mineiro também é ser modesto: comprar uma parabólica, não entender nada de Internet (ou entender e acessar o computador, mas nunca perder a sintonia com as suas raízes).
Ser mineiro é o bezerrinho ferido retirado do açude. A vaca mugindo, literalmente atolada no brejo. É conhecer que vai chover quando o calo dói e a saracura pia, longe.
Ser mineiro é registrar nosso folclore a cada ano, numa corrida desenfreada contra o tempo. É consertar o patrimônio hiostórico, pedindo desculpas ‘apológicas’ aos nossos antepassados...
Ser mineiro é ter memória: guardar no museu e no coração toda nossa grandiosa história!
Orgulho-me de você, meu irmão mineiro, trabalhador das minas, calção por vestido no corpo e lanterna pendurada na rocha. Você, lavrador das campinas, que carrega na alma a eterna sabedoria dos anos. De você, operário das máquinas, chorando o custo de vida.
Saúdo o peão ponteiro, o fiador e o meeiro.
Minas do artesanato e da grande industrialização. Do futebol e dos grandes craques.
Minas dos grandes sertões e veredas, das corredeiras, das grutas, das lindas chapadas, da mais bela geografia!
Minas de Milton Nascimento e Adélia Prado. Elias José e Edson Arantes, Pelé. Olavo Romano e Drummond. Guimarães Rosa e Otto Lara Resende. Vanderlei Timóteo. Políticos; estadistas; grandes nomes da poesia e da prosa; ilustres; guerreiros; severos; sinceros.
Ser mineiro é, enfim, chuchar a lua com bambu, tirando o chapéu pro Olavo, o Romano, mas mineiro por vocação e berço.
É o glorioso cair da tarde. O sino da igrejinha repicando sinos, embalsamando a dor. É o silêncio da Ave-Maria.
Do outro lado da porteira redescubro valores. Já não posso dar marcha-a-ré: é hora de pegar o trem da história e celebrar, ainda que tardio, o gosto de liberdade – o gosto de ser mineiro!
Graça Lacerda- 1998
(Essa crônica foi considerada "hors concours" quando da realização do 5º Concurso Literário da Superintendência Regional de Ensino de Pouso Alegre, para a Semana Literária de mesmo nome, 1998).
19 comentários:
Morro de vontade de conhecer Minas!!!
bj
Minha amiga, não pude conter as lágrimas ao ler sua crônica, mineira de coração que sou, casada com um mineiro de muito boa cepa, mãe de um mineiro que se divide entre BH e SP, amiga de muitos amigos que por la vivem... Revi a terra, revia a gente, revi meu amor, numa só emoção... Lindo demais, viu?
Vou pedir licença para enviar este seu texto para meu filho e para um primo muito querido lá de BH, pois tenho certeza que vão adorar.
Beijos, boa tarde
Crônica Linda, adoro os mineiros apesar de não conhecer o Estado!
Amiga Graça,
Li o seu texto e fiz uma viagem ..rs..que maravilha.
Tenha uma noite linda.
Meu abraço.
Deus seja contigo.
E viva Minas Gerais!
Super beijo pra vc, Graça!
Menina,que coisa mais linda de nossa Minas tão Gerais, foi brilhante nesta redefiniçao da arte de ser mineiro.Premios mesmos pela arte tao linda.Dizem que o mar morre de inveja por não poder conhecer as serras de Minas.Ser mineiro é "bãodimaisdaconta uai". Senti gosto de pão de queijo com cafe feito de rapadura,hummmm.
Parabens e meu terno abraço de paz e luz.
Oh, Minas Gerais!
Saudades sempre aqui no peito.
Sempre quis conhecer Minas Gerais, agora que li teu texto e pude por encanto da literatura estar por alguns intantes no teu estado maravilhoso, mais ainda quero pisar um dia aí. Quem sabe?
Mas o melhor de tudo, mesmo, é o sotaque dos mineiros... Se uma mineirinha falar qualquer coisa ao meu ouvido: - Fico besta!
Um abraço!
Parabéns, Graça!
Ah, Minas Gerais, quem te conhece não esquece jamais.
Conheço bastante das Minas Gerais e pretendo conhecer ainda mais. Terra dos meus avós.
Beijos
- O carioca aqui, filho do marido mineiro de minha mãe com a mulher mineira de meu pai, agradece penhorado as belas lembranças que você me trouxe de Ponte Nova, Barbacena e Belzonte, e as recordações das travessuras da meninice no sítio da Jatiboca, em Santa Cruz do Escalvado. Quanto ao texto, só digo:
- Se não fosse "hors-concours" era covardia! era marmelada!
- Valeu, mineira. Você honra suas origens e é o orgulho das Alterosas. Parabéns!
Minha querida e amada amiga Graça.
Me sinto feliz em ter sangue mineiro correndo por minhas veias, papai e mamãe são mineiros, são primos em primeiro grau.
Por isso sinto um carinho enorme pelo povo mineiro, e como amei quando por diversas vezes estive a passear por várias cidades desse lindo estado.
Um dia ainda quero voltar, quero sentir a hospitalidade que todos nos dispensam.
Amei essa postagem.
Beijos dessa que lhe tem um enorme apreço.
Fique com Deus querida.
Minha querida
Um texto muito lindo.
Um voltar no tempo...regressar às origens, adorei.
Beijinhos
Sonhadora
Que delícia!!!!!!!!!!
Um desfile em cenas de vida, sabores, paisagens, riqueza cultural!
Sou apaixonada por Minas!!
Vivi e vivo no decorrer da vida, momentos maravilhosos nestas terras abençoadas!!
Beijo carinhoso querida amiga
Bea
Vim te ler e deixar meu carinho, aceite!
Bj
Lu
Ai, ai... a descrição fiel da vida que eu sempre quis viver... Quem sabe eu ainda consigo, essa vida simples e deliciosamente natural, respeitando o tempo das coisas e das gentes, convivendo com bichos e plantas e me sentindo filha de Deus.
Quem sabe eu ainda mereço essa benção.
Obrigada por esse lindo momento que vivi através das palavras de Graça Lacerda.
Beijokas, minha amiga.
Oi Graça!!!
Fiquei emocionada com suas memórias tão cheias de afeto, cheiros e sabores (que vontade de comer quitutes mineiro!).
...E a vontade de conhecer Minas vai crescendo aqui no peito.
Abraços, querida
Mônica
Bravíssimo! Texto lindo de viver, como diz nossa amiga Regina...
Muito merecido o prêmio, professora Graça.
Beijos... Cuide-se!
Tenho presente! Busque-o na Fênix!!
Bju!
Olá, querida amiga
Minas é o Estado do meu coração... sei bem como são os mineiros: acolhedores como ninguém... qualquer dia é de festa pois tem um número significativo ao redor da mesa para jogar conversa fora ou deleitar uma suculenta refeição...
Que bom vc falar de MG para nós!!!
Tem uma referência aos seu Blog no meu:
http://espiritual-mimo.blogspot.com
Tenha ótimo feriadão e votos de serenidade.
Abraços fraternos
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